
Autor: por Mauro Camargo
Inovação no setor público vai além da tecnologia e exige mudança cultural, defende professora Leany Lemos
Durante palestra no III Congresso Nacional de Gestão Pública, a especialista do IDP analisou os entraves e as perspectivas para a modernização da administração, enfatizando a superação da "cultura da desconfiança" e o papel do controle e dos recursos.
Brasília, DF – A inovação no setor público transcende a mera implementação de novas tecnologias, exigindo uma profunda transformação cultural que priorize a confiança, repense processos e promova um ambiente propício ao desenvolvimento de soluções eficazes para a sociedade. Esta foi a mensagem central da professora Leany Barreiro de Souza Lemos, do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), durante sua participação no III Congresso Nacional de Gestão Pública. Com uma análise crítica e propositiva, Lemos abordou o que é inovação, os incentivos e barreiras existentes, e o futuro da inovação na gestão pública brasileira.
"Quando falamos de inovação no setor público, muitas vezes pensamos imediatamente em plataformas, em 'vamos mudar tudo para o digital'", iniciou a professora. "A gente só tem que ter muito cuidado com as ideias de digital. É importante, porque a gente sabe que o computador quântico vai ser super importante, assim como a área farmacêutica, a cibersegurança. Enfim, tem uma série de inovações na área tecnológica. Mas [...] existem muitas inovações que não dependem de tecnologia nenhuma, e hoje a gente pode fazer coisas transformacionais", ponderou, citando que a tecnologia, por si só, "não resolve problemas culturais".
Para Lemos, a "cultura da desconfiança" predominante no Brasil é um obstáculo significativo. Ela ilustrou com uma experiência pessoal: ao se mudar para os Estados Unidos em 2003, levou uma vasta documentação de seus três filhos, mas quase nada foi solicitado, pois partia-se do princípio da confiança e da obrigatoriedade de a criança em idade escolar frequentar a escola. Em contraste, ao retornar ao Brasil, mesmo para a escola onde seus filhos já estudavam há anos, enfrentou uma burocracia considerável.
"A nossa cultura, os sociólogos dizem isso, é uma cultura da desconfiança [...] A gente acredita que quem é da nossa família [é confiável], o resto a gente desconfia muito. E isso tem muito impacto em como a gente organizou e organiza os nossos processos. Então, inovar também significa [mudar] essa forma de pensar, significa começar a acreditar que as pessoas estão de boa fé", argumentou.
A implementação do Sistema Eletrônico de Informações (SEI) no Governo do Distrito Federal, processo que ela acompanhou, serviu como exemplo prático. Apesar de ter sido implementado em 92 órgãos em dois anos e meio – "uma coisa que nem o governo federal tem hoje", segundo ela, e que resolveu problemas como o tempo de tramitação de processos. No entanto, a tecnologia não eliminou todos os entraves.
"Tinha resistência da própria burocracia [...] mas não resolve os problemas de processo, sabe? Quando o 'carimbo' do processo vai para fulano, para ciclano... A gente acaba criando também formas de proteção", explicou.
Incentivos, barreiras e o ambiente VUCA
A professora destacou que o ambiente atual é caracterizado pelo conceito VUCA – Volatilidade, Incerteza (Uncertainty), Complexidade e Ambiguidade. "O mundo não é simples, o mundo traz muita incerteza e é volátil. E o governo, os estados, eles não estão imunes a essas características que são da sociedade. Então, esse é um grande desafio para a gente com inovação: atacar sabendo que essas características [existem]", afirmou, ressaltando que, mesmo assim, é preciso entregar serviços de qualidade.
Um exemplo de inovação relevante e por vezes despercebido, segundo ela, foi a iniciativa do governo federal de realizar concursos públicos conjuntos. "Eu achei isso sensacional, porque para lidar com problemas complexos, tem que ter estrutura e gestão de pessoas que seja flexível, moderna, capaz de aprender e mudar ao longo do tempo. Essa coisa de carreira em 'Y', dos anos 80, não resolve mais hoje", defendeu, elogiando a ideia de uma gestão de pessoas mais organizada e coordenada.
Entre as principais barreiras para a inovação no setor público, Leany Lemos apontou o sistema de controle. "Quantas vezes os gestores deixam de fazer algo porque [pensam] 'o tribunal vai questionar'? [...] A gente percebe nos gestores da gestão todos os dias, no nível mais operacional, o nível de gerência, o nível de quem está fazendo, empregando: 'eu só assino com medo, porque eu estou com medo de responder'", relatou. Ela reconheceu a essencialidade dos controles horizontais para a qualidade da burocracia e a transparência, mas observou que, na operacionalização, "em muitos lugares, isso freia a inovação, freia a mudança".
Outro freio "brutal" é a dificuldade de recrutar pessoas capacitadas e competentes para postos de liderança, muitas vezes receosas de responderem por suas decisões.
Citando estudos da Universidade de Oxford, Lemos mencionou que o Brasil é um país "fora da curva" em termos de regras e sistemas de controle, o que, no nível local, pode ser usado politicamente, criando barreiras para a inovação e para o desenvolvimento de lideranças de qualidade.
A disponibilidade de recursos também é uma barreira relevante. "Infelizmente, para tudo a gente tem que ter orçamento, e todo orçamento ele é insuficiente, até mesmo na Suécia. Inovação também muitas vezes exige investimentos a fundo perdido", destacou, comparando com o volume de recursos destinados à pesquisa e desenvolvimento em outros países, mesmo em universidades privadas de excelência.
O futuro da inovação: foco nas pessoas e no planeta
Ao projetar o futuro da inovação, a professora evocou o impacto de tecnologias disruptivas, como a inteligência artificial, comparando seu potencial transformador à surpresa causada pela primeira aparição de um avião em uma pequena cidade. No entanto, o cerne da inovação vindoura, para Lemos, deve ser o bem-estar humano e planetário.
"Eu acho que o desafio é a inovação ser das pessoas, para o bem-estar das pessoas", afirmou, trazendo a saúde como um campo fértil. Ela relembrou a criação do centro de telemedicina em Pernambuco, uma iniciativa pioneira que demonstrava o potencial da tecnologia para ampliar o acesso a consultas especializadas muito antes da popularização da prática.
Com o envelhecimento da população – o Brasil deve ter mais de 20% de idosos até 2040 – e os desafios financeiros do SUS, "a inovação tecnológica pode trazer tudo nesse sentido para o bem das pessoas".
As mudanças climáticas e seus impactos, como as recentes enchentes no Rio Grande do Sul, também exigem um olhar inovador. "A gente vai ter que também pensar que nessas mudanças, como é que essas inovações vão poder olhar para o nosso planeta, para o nosso bem e uma vida melhor", disse.
Por fim, Leany Lemos depositou esperanças na geração mais nova. "A minha geração, a geração X, é uma geração muito focada no trabalho [...] A geração mais nova tem foco na qualidade de vida, de pensar 'eu quero saúde, eu quero saúde mental, eu quero ter prazer no trabalho'. Então, eu acho que essas inovações, espero, a minha esperança, é que sejam puxadas por essa e dessa geração mais nova", concluiu, agradecendo a oportunidade de debater e aprender no congresso.
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